IMERSÃO EM TERRITÓRIO OLHOS D´ÁGUA

Dalton Paula, Daniel Pellegrim, Iris Helena, Ricardo Theodoro, Santiago Selon e Thaís Galbiatti

Residência artística no NACO Núcleo de Arte do Centro-Oeste

(texto para catálogo)

Residência artística Imersão em [território] Olhos d’Água: uma historieta sobre residências transitórias

“É claramente uma mudança de tom, da ‘aspiração’ a um outro lugar que não chega para satisfazer a questões habituais, ou as respostas convencionais a que estamos habituados. É o novo espírito do tempo, esse ambiente imperceptível que pode nos incitar a ver na errância, ou nomadismo, um valor social a muitos títulos exemplar.”

Michel Mafesoli. Sobre o nomadismo: vagabundagens pós-modernas, 2001.

Percursos e linhas de fuga: pensando a residência.

A ideia ao longo da viagem como historiadora da arte e curadora foi a de construir percursos que possibilitassem a elaboração de coordenadas para a composição de um mapa mental que pudesse abranger espacialidades imaginárias e ficcionais pertencentes ao território da arte. Desejo de construir vasos comunicantes interligados por meio de associações de ideias e escritas que, em um fluxo contrário à pulsão globalizante de tudo unificar, não almejassem a chegada a um porto seguro, mas a um ponto de fuga, de onde partem linhas que se dirigem tanto a uma floresta densa e fechada, ao centro de um rio caudaloso e corrente, e ao olho do furacão. Lugares onde pulsa o obscuro, o perigoso e o desconhecido. E onde fecunda a imaginação que não cessa.

Esta é uma pequena nota de deslocamento viageiro.

Uma das linhas traçadas pelo ponto de fuga deste mapa mental desemboca na paisagem do cerrado, onde eu me encontro, movo-me e mergulho para, de vez em quando, emergir. É nesse cenário no Centro-Oeste do Brasil que estou alojada. Desse ponto de vista vivo, vejo, falo, leio, escrevo e comento o mundo. Estou cercada pela paisagem de árvores de baixa estatura, de galhos retorcidos e troncos texturizados. Há folhas graúdas e folhas miúdas. E as flores, quando surgem, são pontos luminosos, de uma graça tímida e doce. Esculturinhas elaboradas. E tudo isso com céus furta-cores que põem à mostra uma paisagem que se apresenta ao olhar sem muito alarde. O cerrado é a minha superfície de inserção geográfica, cenário para a elaboração de ficções cuja arte é o dispositivo central.

Esta é uma nota de assentamento para um deslocamento viageiro.

Em vez do rio caudaloso e de um olho de furacão, está um olho d’água incrustado na terra vermelha. Dali parte um fio que se expande e se aloja na minha imaginação. Parece tolo nadar na corrente de um olho d’água sendo ele uma parcela tão ínfima de um território. Mas, como nascente que é, ele está lá, ocupando um significativo espaço. É existência. Aqui o olho d’água é, simultaneamente, materialidade e metáfora para o que vem a seguir.

A presença massiva de referências aos fenômenos naturais até agora neste texto, não é mera figura de linguagem, nem uma quimera, muito menos chorumela. A natureza surge aqui como meio fértil para o traçado de paralelos com as situações que postulam a produção arte como mainstream, (em português, corrente principal). Aludindo, também, a fenômenos naturais, esta expressão é usada corriqueiramente no meio da arte para designar o curso hegemônico que determina as posições de valoração para as produções artísticas. Um olho d’água, nesse sentido, é contracorrente.

O Projeto Território Centro-Oeste.

“No campo os deuses ainda descem até os homens, pensou ele (Ulrich), a gente é alguém, mas na cidade, onde há mil vezes mais acontecimentos, não somos capazes de relacioná-los conosco: e assim a vida começa a tornar-se essa notória abstração.” Robert Musil. O homem sem qualidades, 1930/1943.

Deslocamento, migração, mobilidade, errância, vagabundagem, deambulação são expressões que apontam para as diversas instâncias de sentido relativas ao fenômeno de uma alteração de estado que proporcionam, à primeira vista, mudanças de ordem espacial, mas que derivam, em última instância, da vontade dos sujeitos de conferir sentidos próprios à existência. O estar em trânsito afeta todos os sujeitos desde os nomadismos mais remotos.

Os estímulos que provocam o movimento têm raízes diversas e encontram sentidos em momentos históricos e sociais distintos: tanto podem ser impulsionados pelo mito da terra sonhada, como no caso dos povos indígenas Guarani, sempre em busca da terra sem males, como podem ser originados por uma vontade de deambulação, moderna e curiosa, própria do flâneur, observador apaixonado da vida metropolitana e que foi tipificado pela crescente urbanização que começa no final do século XVIII. De um modo ou de outro, essa compulsão a movimentações contradiz a noção de que o doméstico é o habitat “natural” do ser humano quando é, de fato, uma construção que enquadra o sujeito dentro de uma lógica global de vivência e convivência.

Quando trazemos a questão do deslocamento para o terreno da arte e para o âmbito específico das residências artísticas que, em nosso caso, localizam-se em zona rural, deparamo-nos com linhas traçadas há muito pelas ações de artistas e intelectuais que buscavam, desde a irrupção das primeiras metrópoles, afastar-se do padrão urbano citadino, regido por cronogramas estritos e comportamentos normatizadores e ir ao encontro do arcaico, do idílico, na tentativa de constituir uma nova geografia; uma geografia imaginária.

Interseções e passagens: expondo o processo imersivo.

A exposição Território Centro-Oeste: Interseções foi derivada do projeto de residência artística Imersão em [território] Olhos d’Água que inaugurou o programa de residências do Núcleo de Arte Centro-Oeste, NACO, localizado em Olhos d’Água, no município de Alexânia. Durante duas semanas, seis artistas – Dalton Paula, Daniel Pellegrim, Iris Helena, Ricardo Theodoro, Santhiago Selon e Thaís Galbiati – radicados nos estados de Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Distrito Federal, estiveram reunidos para participar de um processo de partilha e produção.

A ideia norteadora para este projeto cultural surgiu da vontade de celebrar o Centro-Oeste a partir de uma reflexão de caráter geopolítico que possibilitasse problematizar a noção de fronteira, considerando a globalização não pela perspectiva da universalização, mas pelo viés que possibilita a articulação das diferenças que surgem a partir dos encontros dos artistas com as particularidades geográficas, culturais, sociais e semânticas locais, gerando misturas, hibridizações e contaminações que aparecem na reflexão e produção artísticas.

O território Olhos d’Água/Centro-Oeste é considerado aqui como um espaço vivo, onde ideias podem surgir e se proliferar a partir do encontro entre o que cada artista leva consigo, entre o que ocorre intragrupalmente e o que surge ao se confrontar com o local de estadia. É, para o contexto da arte, espaço poroso, onde ficção e realidade se configuram a partir de estados de confluências poéticas.

Nesse sentido, esta primeira residência não teve o objetivo de tematizar o encontro ou procurar uma linha de aproximação entre poéticas artísticas que viabilizasse uma produção alinhada a algum princípio curatorial. O que motivou a seleção dos seis artistas foi a diversidade de seus percursos e a pluralidade de suas visões poéticas.

O processo imersivo teve a duração de 17 dias, o que parece pouco; um arranhão no tempo. Entretanto, essa sensação se aprofunda para quem se dispõe a mergulhar em uma vivência de deslocamento que alija o artista de seu ambiente de origem e de suas obrigações corriqueiras.

As experiências vividas durante este tempo tomam dimensões inusitadas e se refletem na produção, como foi o caso da ida do grupo, logo no início do processo, à casa de Dona Geralda, onde ocorria um festejo do Divino Espírito Santo, que se revelou emblemático para o entendimento do contexto cultural, social e religioso do lugar. Outras interações com a comunidade compuseram este panorama de reconhecimento de território, como as incursões às casas dos moradores da cidade realizadas por Dalton e Iris; a pintura no mural da casa das irmãs Dina e Lia, feita por Santhiago com participação de um grupo de meninos do lugar; a primeira exposição feita no Bar Museu de Dona Cecília, concebida por Daniel; a oficina de desenho para as crianças na praça do Coreto conduzida por Thaís e os registros fotográficos e em vídeo de Ricardo.

Além da experiência de viver a comunidade, os artistas levaram para a residência as suas formas de pensar e lidar com a imagem que surge em suportes e linguagens como a fotografia, a instalação, o desenho, a pintura e o objeto, juntamente com as proposições e assuntos que compõem seu universo de pesquisa, como memória, ruína, decolonialismo, corpo, subjetividade, ancestralidade, contemporaneidade e espaço, fragmentação e vazios.

O projeto expográfico foi elaborado em consonância com o conceito curatorial, que optou por arquitetar um espaço que privilegiasse a ideia de um percurso em fluxo, contemplando o que foi processo individual e colaborativo durante a residência – as passagens – e alguns trabalhos de referência do repertório de produção do artista com a finalidade tanto de apontar para índices de sua trajetória individual como para os “desvios” no percurso. Procurou-se, em última instância, relacionar a multiplicidade e o caráter experimental de uma produção realizada em zona de impermanência e instabilidade derivadas de um processo de “reterritorialização” interna.